Imagine você na rua. Um piano ecoa no restaurante ao lado. Alguém grita. É possível ouvir conversas que se misturam às notas. Um avião passa ao alto. Um grupo de adolescentes joga garrafas de cerveja contra a parede. Carros buzinam. Você ainda tem uma música na cabeça que sua vizinha tocava de manhã. O som dos seus passos no chão é distorcido por uma sacola que grudou na sola do seu sapato. E toda essa massa sonora só existe desordenadamente na sua cabeça.
Se tudo isso pudesse ser previamente gravado e reproduzido. Se pudesse ser recortado e organizado harmonicamente. Ou ainda, se pudéssemos captar as ondas desses sons isoladamente, juntá-las, organizá-las, com a possibilidade de distorcer e brincar ao nosso bel prazer? Veja, em retrospecto quase poético, como tudo isso é possível.
Monique Oliveira
synthorchestra.org
Quando, em 1977, aliada a Giorgio Moroder, Dona Summer entoa I Feel Love; Kraftwerk lança Trans-Europe Express; e o Parliement's coloca nas pistas o seu Flashlight, a música eletrônica reverberava centenária desde 1876 - ano em que Alexander Grahan Bell registra patente do telefone. Lá, na música hoje erudita, compositores românticos abandonam o classicismo.
Figuras como Wagner, Schumann e o performático Lizt dão mais importância ao ritmo e criam maior liberdade de modulação. Mas, enquanto músicos buscavam novos caminhos apoiados no ideário iluminista, a tecnologia estabelecia o princípio que seria mais tarde a maior revolução musical do século XX: a conversão da energia acústica em elétrica e sua decodificação.
Mas dessa inovação até o estabelecimento de uma estética própria temos um longo caminho. A possibilidade das novas tecnologias de também reproduzirem instrumentos musicais tradicionais como, com um botão, obter o som de um trompete, um violino ou um saxofone trouxe, antes de qualquer inovação que levasse à exploração de um outro universo sonoro, a eletrônica como meio facilitador da distribuição e da produção musical.
Música eletrônica: o fim do couvert?
Já no século XIX, o advogado Thaddeus Cahill explorou comercialmente esse potencial ao conceber uma maneira de distribuição de música em massa por meio do telefone com o Thellarmonium, aparelho inventado por ele que produzia música eletronicamente.
Com ele, em 1906, a chamada hoje música ambiente tinha a sua primeira transmissão eletrônica no Cafe Martin, localizado entre a Quinta Avenida e a Broadway, em Nova Iorque. Sem a sofisticação de um amplificador, casais ouviram, através de uma corneta acústica instalada em suas mesas, os ruídos gerados pelo Thellarmonium.

Das inovações que se seguiram ao Thellarmonium, o Theremin chega em 1907. É baseado no princípio da combinação de duas freqüências altas, gerando uma mais baixa. A mão é tida como o controle. Ao tocar, o músico se assemelha a um maestro regendo uma orquestra. Uma mão controla a altura da nota e a outra ajusta seu volume. Com a alternância desse movimento, surgia-se assim sons inéditos, mas também monofônicos, com um timbre fixo, semelhante ao violino.
A especificidade do instrumento e a facilidade de tocá-lo, no entanto, não levou ao sucesso comercial do Theremin. Mas muitos o utilizaram. Na época, Clara Rockmore, tornou-se performer exclusiva do instrumento. Já na música pop, o Theremin foi utilizado pelos Beach Boys em "Good Vibrations" e por Tina Turner, em Nutbush City Limits.
Beach Boys - Good Vibrations
O uso do Theremin demarca a intro
Ainda monofônico, mas com funções que permitiam controlar o timbre da nota, o volume, e ainda a filtragem de harmônicos, inexistente na época, só chegou com o Trautonium, concebido pelo engenheiro alemão Freiderich Adolf Trautwein em 1930.
O Trautonium chegou a ser comercializado pela Telefunken entre 1932 e 1935, mas a idéia de um instrumento eletrônico concebido comercialmente só chegaria o órgão Hammond, uma versão melhorada do Thellarmonium, mas com aprimoramentos interessantes. Como o controle de volume por meio de um pedal e efeitos de vibrato. Além de um bom acabamento que o levou a ser fabricado até 1974.
Keith Emerson, músico associado ao rock progressivo, mostra o potencial do Hammond em performance de tirar fôlego (1971)
A estética eletrônica musical
Mas existe outro lado da música eletrônica que explora realmente o seu potencial: de produzir os mais variados timbres e alturas; de captar as mais variadas ondas geradas pelos mais variados instrumentos; de possibilitar sua junção e reprodução; de explorar o ruído; a imaginação. É a música eletrônica como estética. Não como técnica. É tocar o som imaginável, através da reprodução do se ouve no ambiente, ou até mesmo de como se ouve. Da captação dos sons só percebidos através da imaginação – mesmo que num primeiro momento estejam muito distantes da idéia que se tem de música.
E teve um instrumento que fez isso possível: : o sintetizador RCA Mark Com um sofisticado sistema de síntese de sons ,desenvolvido em 1950 pelos engenheiros norte-americanos Harry Olsel e Herbert Belar, ele que ocuparava uma sala inteira no laboratório da RCA, em Princeton. Era o primeiro pensado para a reprodução de qualquer som, baseado nno conceito de que os sons são formados por vários parâmetros: freqüência, amplitude, espectro e envoltória. E que eles podem ser controlados, independentemente, em tempo real. Estava concebida, assim, a linguagem dos sons; não das notas.
A era dos sintetizadores
No começo dos anos 70, surge o moog sintetizador, um marco da produção da música pop eletrônica. O tecladista Keith Emerson, do grupo de rock progressivo Emerson, Lake & Palmer, o explora bastante e obtém dele efeitos impressionantes.
Sintetizador Moog dos anos 70 restaurado. Diferentes canais para controle do som.
O compositor e instrumentista Walter Carlos produz a trilha sonora do filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, basicamente com o moog sintetizador. Melhor: ele pegou a peça originalmente escrita por Henry Purcell (1659 - 1695), "O Funeral de Queen Mary II" e a reproduziu integralmente no moog. Ainda na década de 70, os músicos, por vezes, usam elementos eletrônicos apenas como detalhe de arranjos – Robert Plant, do Led Zeppelin, utiliza um teremim em concertos.
Cena de Laranja Mecânica
Henry Purcell's Queen's Funeral - 1695, por Wendy Carlos
Protocolo Midi
Também um aspecto da produção recente da música eletrônica, o sample é uma amostra de sons aleatórios justapostos eletronicamente a outros panoramas musicais. Com ele, torna-se possível colar e copiar diversos tipos de som, inclusive os acústicos, e repeti-los numa ordem programada.
No começo dos anos 80, com o avanço da tecnologia digital, da fita DAT de gravação, da popularização do microcomputador doméstico e de estúdio, do sistema de gravação pro-tools, adaptado a um teclado, muitos podem produzir música eletrônica em casa – e de excelente qualidade.
Também aí surgem os DJs, que não apenas tocam músicas nos clubes, mas remixam boa parte das produções existentes, transformando radicalmente a produção musical. Ainda nos anos 80 é criado o Musical Instrument Digital Interface (MIDI), programa de transmissão de dados entre computadores, sintetizadores, mixers computadorizados e gravadores.
O MIDI padroniza uma linguagem que permite a conversa, a conexão entre instrumentos musicais. Ele possibilita que uma mesma pessoa componha, execute e grave peças musicais sofisticadas. Na década de 90, novos "grupos" – na verdade, formados por uma só pessoa – de música pop eletrônica desfrutam esse aparato.
Entre eles destacam-se 808 State, Peter Gabriel, Thomas Dolby, Brian Eno, Holger Czukay, Todd Rundgren, Cabaret Voltaire, Aphex Twin, Autechre, Speed J e Black Dog. Outros gêneros musicais aparecem: techno, ambient, trance, trip hop, drum’n’bass e house. No fim dos anos 90, os destaques são The Orb, Orbital, Underworld, Fat Boy Slim e Afrika Bambaata.